segunda-feira, 3 de abril de 2017

A Arena

"Vendo daqui, chove demais
Os momentos desse filme podem ser finais
Algum horror, nenhuma paz
Já que esses olhos verdes só me olham sem amor
E na ponte sobre o nosso rio corre algum rancor
Dos fantasmas que passeiam soltos pela escuridão
Do vestido da princesa e a mina de carvão" (Darvin - Epílogo)



Encosto meus dedos em um teclado de computador sujo, talvez eu repare em detalhes até imperceptíveis a olho nu. Eu vou empilhando meus sonhos como se fosse uma grande torre de Babel,
com a esperança que ela alcance os céus. Destruí minha vida várias vezes com apenas palavras inventadas na minha cabeça, reparei erros que eu achei que eles eram feitos aço. Eu fui um mago sem magia, um guerreiro sem espada, um cantor sem voz. Eu fui pessoas que foram mais verdadeiras que eu mesmo. Eu sangrei sem precisar que uma adaga atravessasse o meu peito, e rezei pra deuses os quais eu não acreditava. Eu vivi muitas vidas com poucos anos. E o que eu carrego na minha mochila, é um punhado de pedras. Um punhado de pedras com lascas vermelhas, um punhado de dores feitas de verdade. E hoje eu sinto uma saudade.


Aonde eu estou agora, me diga? Com tantas lágrimas e dores feitas de pesticida, investi meu tempo em vão para que meus gritos fossem ouvidos. Eu estava sendo feito de pedaços de vidro, criando espelhos para que eu pudesse esconder minhas rachaduras. Mas não pude. Percebi que minhas rachaduras se aumentavam a medida que as maquiagens eram passadas nas feridas, e percebi que eu era feito apenas de rachaduras, e não de vidro. Eu percebi que era falho. E estava tudo bem ser assim. Confesso que entrei em choque, como poderia de tal forma existir e ser imperfeito? Por que não posso lutar contra os meus defeitos? E quase entrei em erupção. Meus olhos pediam um pouco de descanso, mas o meu corpo pedia mais uma luta.


E eu entrei na arena, com dois pedaços de pedra, e um escudo feito de latão. Olhei ao meu redor, e todas as pessoas que conheci estavam lá na arquibancada da arena, algumas torcendo por mim, outras torcendo pelo meu adversário. E então, entra o favorito, o meu adversário. Eu mesmo. Ele vinha carregando uma espada negra com punhal vermelho, um escudo preto com detalhes vermelhos e os olhos que pareciam estar em chamas. Sua armadura completamente escura já dizia o que todas as pessoas sabiam: Ele era meu executor. Olhei distante, vi um outro rosto meu na arquibancada lá em cima, escondido entre panos e mais panos, com as mãos juntas, como se fizesse oração aos céus. Percebo que ele está com medo.


A medida que vou vendo mais detalhes, perco por um instante a concentração e quase sou ferido por um golpe mortal desferido pelo meu lado negro. A ferida passou de raspão, mas começo a sangrar. O meu medo aperta as mãos com mais força, como se a sua esperança fosse tudo o que ele tinha. E então, volto meus olhos a luta, eu vou desviando, mas ele é rápido demais, quase que eu tomo golpes fatais. Ele levanta sua espada banhada à auto-destruição, e passa perto demais. Se não fosse meu escudo de latão feito de sorrisos forçados, eu já tinha caído. A luta é grande, a arquibancada treme. Os olhos das pessoas me dizem que eu vou morrer. Eu vou morrer.


Olho o dono da festa, o que organizou o evento, era eu mesmo, mas esse eu, não usava roupas extravagantes, ou mesmo tinha servos. Ele tinha roupas simples, estava sentado distante no topo da arena, e não tinha a companhia de ninguém. Ele olhava sem expressão para a nossa luta, como se essa luta fosse um gatilho para alguma coisa. Ele espera pacientemente. E então, a espada atravessa o meu peito. O cavaleiro negro, sorri e sussurra no meu ouvido: "Seja bem-vindo ao seu inferno pessoal. E não, isso não é normal". Eu caio. As vozes são cessadas e minha visão borra, olho pela última vez o rapaz entre os  panos, ele chora. Olho para o topo, o meu lado quieto se levanta e vai querendo partir. Eu quero também.


Mas, eu não poderia de tal forma permitir que isso terminasse assim. Depois de uma hora esticado ao chão, quando a arena, já praticamente vazia, meu adversário, depois de celebrar a vitória, começa a sair da arena, Eu encho minhas mãos de areia, e meus punhos se fecham. Meus olhos abrem, meu corpo deseja um último golpe, um último olhar. Olho ao redor da arena, vejo que o rapaz entre os panos chora e continua sentado torcendo com as mãos fechadas, e no topo, o meu lado silencioso não estava mais lá, parece que ele está descendo para entregar algo para o cavaleiro negro. Eu não vou deixar. Começo a deixar meu corpo tremer. Começo a sentir a adrenalina. Começo a sentir.


Devagar, eu me levanto. A espada, ainda fincada no meu peito, faz meu sangue derramar e continuar quente. Meu olhar pede mais uma luta, meu corpo já disse adeus. "Eu voltei do inferno". O cavaleiro negro me olha assustado, começa a deixar o seu corpo ficar paralisado. O rapaz entre os panos se levanta, e tira os panos. É o meu rosto, mas agora não mais chorando, e sim aplaudindo. Ele sozinho ecoa a arena com suas palmas. O cavaleiro está irritado com as palmas, e meu lado silencioso, que caminhava devagar em direção ao cavaleiro, fica parado no meio das escadas da arquibancada. Como se dissesse, é sua chance, não desperdice.


Eu tiro a espada do meu peito, o sangue cai ainda mais, mas não vou deixar, seguro a espada com as duas mãos, jogo meu escudo de latão pra longe. É um último golpe, com todos os clichês de adeus. O cavaleiro tenta usar seu escudo feito de lágrimas, a espada o destrói, e a espada parte sua cabeça em dois. O sangue jorra no meu rosto, acho que finalmente acabou. Eu não sei exatamente como estou de pé. O jovem eu da arquibancada cheio de panos chora de alegria e aplaude com força, o meu lado silencioso vem em minha direção carregando algo. Eu caio no chão, como eu conseguiria fazer algo agora? "Você fez bem. Não sei o que aconteceria com todos nós se ele tivesse vencido." Ele me entrega um anel, e coloca nos meus dedos. Diz que ele é o lado dos sonhos, da criação, da invenção, ele é quem luta por mim nas horas em que eu preciso inventar. Diz que ele vai lutar por mim agora. É hora de um descanso. Reconheço o jovem da arquibancada, é o meu lado otimista. Meu lado pessimista, era o cavaleiro negro. E eu, era o real. Fecho os olhos, deixo que o ferimento me abrace. Não vai existir adeus enquanto tiver esses três caras lutando.

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